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Interview with Zundap (Portugal) - www.zundap.com
Entrevista a Rory McLeod
Z - Para si, a música folk tem sido um modo de vida (considerando
todas as viagens que fez, o modo como lida com as pessoas, aquilo que
canta). Pensa que as pessoas que não estejam relacionadas com
esse universo o consideram naif?
R – Para ser sincero, nunca considerei que a música folk
fosse, para mim, um modo de vida. Por outro lado, não sei se naif
será a palavra correcta. Acho que as pessoas não me consideram
naif. Talvez elas até pensem isso, mas pelo menos não mo
dizem directamente! Não estou preocupado com aquilo que possam
pensar acerca de mim. Em Austin, no Texas, diziam que eu era um vagabundo.
Nunca me vi dessa forma, mas também não nos podemos ver
sempre tal como os outros nos vêem... Nessa altura, eu dormia vãos
de escadas e em carros velhos.
Uma vez uma pessoa veio ter comigo e disse-me que adorava ser como eu...
Pareço ser “livre” quando faço alguma coisa
de que gosto... Sempre pensei que esse fosse um segredo da vida, encontrar
algo que se gosta de fazer e tentar ficar tão bom nessa actividade
que alguém acabe por nos pagar para nós a desenvolvermos.
Evidentemente que a minha vida não é assim tão fácil
ou tão cheia de glamour. Aquela pessoa que queria ser “como” eu
devia simplesmente estar infeliz com o trabalho que tinha de fazer para
sobreviver, ou talvez até estivesse desempregada e procurasse
um sentido para a sua vida. Uma missão ou qualquer coisa do género,
não sei. Somos todos ignorantes; simplesmente cada um de nós
ignora coisas diferentes.
A minha atitude não é sempre a mesma. Posso ser uma mistura
de idealista e cínico. Já actuei como advogado do diabo
e já actuei ou fingi actuar de uma forma ignorante ou naif para
sacar a verdade a alguém, ou para descobrir qual era ou podia
ser o motivo desse alguém. Sobrevivi até agora por fazer
aquilo que faço. Já estive na rua, sem dinheiro, a cantar
entre bandidos. Já cantei para pessoas com dinheiro – e
assegurei-me de que me pagariam. Já cantei de graça à volta
de fogueiras.
A certa altura das minhas viagens tive de regressar para descobrir onde
era, afinal, o meu lar: tive de descobrir se estava a ir a algum sítio
ou se andava simplesmente a fugir. Quis viver novamente numa comunidade.
Talvez tenha experimentado uma espécie de “choque cultural” ao
regressar ao meu país após anos de viagens e, depois de
ter passado a falar noutra língua, dar-me conta de que me tinha
esquecido de partes da minha própria língua. Por vezes,
não conseguia articular imediatamente os meus pensamentos e sentia-me
como se tivesse estado a viver num mundo diferente, distante das telenovelas
e dos mass media com que todos tinham convivido. As pessoas falavam de
personagens de séries da televisão, personagens essas das
quais eu nunca tinha ouvido falar, que eu não conhecia... A princípio,
eu pensava que essas personagens eram pessoas reais... Foi uma coisa
bizarra: as pessoas falavam muito acerca de acontecimentos e histórias
da televisão e eu dei-me conta de que a minha realidade e os meus
temas de conversa eram muito diferentes. Como eu já não
via televisão há alguns anos, de início tive algumas
dificuldades de relacionamento. Só sabia falar acerca de coisas
que me tinham acontecido a mim próprio, de pessoas que tinha conhecido
e amigos que tinha feito, de gente que tinha conhecido nas minhas viagens
por outros países, daquilo que tinha visto ao vivo, daquilo em
que tinha trabalhado. Assim sendo, as minhas experiências eram
bem diferentes das experiências das pessoas que eu encontrei quando
regressei. Dei-me conta de que as minhas prioridades também eram
bem diferentes. Acabei por optar por não falar acerca das minhas
aventuras e da vida excitante que tinha tido na medida em que podia parecer
que eu me estava a gabar das minhas histórias “doidas” às
pessoas da Londres anónima, sobrepovoada, “egocêntrica” e “da
moda”. Eu desejava encaixar-me, misturar-me, e não parecer
diferente ou exótico, não dar vistas. Mesmo assim, dava
nas vistas. Até comecei a vestir roupas mais escuras, abandonando
os tons mais coloridos. Não queria parecer um papagaio emproado;
queria era ouvir muito.
Talvez eu visse as coisas de forma diferente, talvez visse o meu país
e a minha cultura de forma diferente após ter estado tanto tempo
fora. Mais tarde, contudo, apercebi-me de que havia outros que reagiam
a este mundo da mesma forma que eu. Embora não me sentisse parte
integrante de nenhum grupo ou “tribo sub-cultural”, sentia
que tinha uma visão política do mundo que era partilhada
por outras pessoas, muitas outras pessoas que conheci nas minhas viagens,
pela comunidade na qual acabei por viver e com a qual lutei contra as
ordens de despejo, organizando acções em conjunto, protestando
contra o Governo. Sou desta maneira devido também à minha
classe social de origem. Nunca me senti isolado nem acredito que vivamos
num vazio.
Musicalmente, o rótulo de música e de cultura folk parecia-me
claramente o mais abrangente de todos, incluindo coisas tão diversas
como os blues de Muddy Waters, o jazz de Louis Armstrong e Duke Ellington,
a música klezmer de 1900-1930, o country de Hank Williams, o reggae
de Bob Marley e o punk como o dos Clash.
No que diz respeito à minha música e às histórias
que eu canto: não acredito que as minhas canções
sejam inconscientemente simples da mesma forma que podemos considerar
alguma arte “nativa” de naif. Nas minhas canções
tenho sempre tentado ser honesto e directo. Canto acerca da minha família
e de pessoas que conheci para manter a sua memória viva. O mundo
já é complicado que chegue, por isso eu procuro atingir
a clareza e encontrar a minha própria verdade mantendo as coisas
simples. De certa forma, é como se destilasse as coisas para as
tornar mais fortes. Fazer canções é uma coisa complicada.
Faço canções numa linguagem que a minha avó e
a minha família possam entender e utilizo conscientemente um estilo
conversacional nas canções. Procuro riqueza nessa linguagem “simples” mas
trabalhada.
Z – Olha para as suas canções como fotografias de álbum,
como um patchwork de experiências?
R – Por vezes sim, na medida em que elas são experiências
concretas da minha vida sobre as quais eu canto. Elas enriquecem-me e
eu celebro-as em canção; para além dessas histórias,
esforço-me por recordar as cores, as formas e os odores, o tempo
e os lugares, de certa maneira recapturá-los em canção.
Quando canto sinto que estou a recapturar esses momentos para mim próprio,
que estou a revivê-los e a transportar-me a mim e ao público
numa viagem, como se para mim também fosse a primeira vez que
os vivo. Isto acontece cada vez que canto.
Muitas vezes surpreendo-me com a quantidade de experiências que
já esqueci: elas estão algures na minha memória,
são uma espécie de outros mundos, outras vidas e outras
paisagens, momentos... Por vezes um momento íntimo que alguém
me pode recordar quando reencontro essa pessoa, ou um despoletar repentino
da memória durante uma conversa. Viajei muito sozinho e, sem testemunhas,
sem alguém com quem viver esses momentos em conjunto, sem alguém
que depois nos relembre aquilo por que passámos, acabamos por
esquecer muito. Redescobrir uma antiga carta de amor ou uma fotografia
velha e esquecida tirada num determinado lugar com determinada pessoa
tem o mesmo efeito em todos nós, fazendo-nos sentir inundados
de sentimentos de paixão e perda.
Por outro lado, a verdade pode ser multi-dimensional. Se várias
pessoas viverem um determinado momento em conjunto, depois recontarão
a mesma história de formas muito diferentes, cada um utilizando
as suas próprias palavras e apreciações, vendo e
sentindo a experiência de forma diferenciada, dependendo do ponto
de vista e do interesse de cada um.
Isto também deve acontecer no jornalismo. Suponho que aquilo que
eu digo nesta entrevista depende do tipo de questões que me colocam,
bem como do tipo de questões que não me colocam... E, é claro,
depende também de quanto é que eu me afasto da pergunta!
Algumas canções são como fotografias ou fotogramas
dispostos em sucessão. Eu canto canções de amor,
algumas mais iradas que outras. Fiz parte de uma comunidade de gente
revoltada e é possível que transporte essa revolta comigo
e que cante com ela. Nas minhas viagens encontro muita gente sem posses
e revoltada, e apercebo-me de que temos muito em comum; dei-me também
conta de que, por vezes, as minhas canções podem falar
por essas pessoas. Pelo menos é isso que as pessoas me dizem.
Gosto de fazer canções que façam as pessoas sentirem-se
mais fortes e orgulhosas acerca de si próprias, do seu trabalho
e das suas vidas.
As canções também podem ser como cartoons, uma caricatura,
ou então negras e com muito impacte, como uma gravura de Goya
ou uma litografia de Daumier. Tenho um par de canções assim,
nas quais canto com a voz de outros: por exemplo, de um americano branco,
cristão e fascista, um fundamentalista cristão, um maníaco
da supremacia branca.
Z – Como é que vê o mundo
actual?
R – Eu agora sou pai. Presentemente vivo na Escócia, mas
em breve vou mudar-me para Orkney, numas ilhas na costa norte da Escócia.
Dantes vivia na minha carrinha. Tentamos viajar o mais possível
como família; gosto que viajemos juntos. No entanto, isso nem
sempre é possível.
O Solly tem 3 anos e tem feito tours comigo desde as 3 semanas de idade.
Já tocou colheres comigo, em palco. Todos os miúdos gostam
de copiar e imitar: ele imita-me e também imita o avô dele,
pondo uma máscara para o pó, serrando, martelando, furando
e brincando com madeira. O Finn, o nosso filho mais novo, tem 7 semanas,
por isso precisa de muitas mudanças de fraldas e muitas canções
de embalar. A vida parece ainda mais frágil do que anteriormente.
Os miúdos são muito vulneráveis e, enquanto pai,
sente-se isso mais intensamente. Sou responsável pela segurança
deles. Enquanto que dantes eu corria mais riscos, o facto de agora ter
filhos tornou-me mais cuidadoso, por exemplo a conduzir na estrada. Tento
chegar inteiro a casa para estar com eles, para brincar com eles. Não
quero perder o crescimento deles, e os miúdos crescem tão
depressa... As mudanças são diárias, especialmente
quando são assim tão novos.
Z – Já alguma vez se cansou de resistir a todos os opinion
makers (companhias discográficas, televisão, rádio,
imprensa) e ao grande público?
R – Tenho sobrevivido cantando teimosamente as minhas canções às
pessoas, viajando com elas e aguentando-me fazendo diversos tipos de
trabalhos. Tenho sobrevivido cantando e fazendo a minha música
de forma independente, sem a TV, sem os media, sem a imprensa, etc. Sinto-me
um privilegiado por fazer as coisas assim, sinto-me com sorte por ter
um trabalho, por ter um trabalho que gosto sem ter de fazer compromissos
e tenho sorte quando, por vezes, me pagam para eu o realizar. Na verdade,
sinto que me pagam para guiar. Guio quilómetros e quilómetros
para ir cantar algures. Sinto que me pagam para guiar e que canto as
minhas canções de graça! Cantaria mesmo que não
me pagassem. Tive de fazer muitas outras coisas para pagar a renda e
poder viver... Ao contrário do que vocês dizem, não
resisti à TV: há alguns anos atrás gravei para a
TV e pude decidir acerca do modo como era filmado. Recusei-me a fazer
playback, fingindo cantar como se fosse um boneco; pelo contrário,
cantei e a gravação foi feita ao vivo. Nunca tive um agente
para me meter na TV ou em outras coisas que eu não queria. Na
verdade, nunca procurei um agente... Não recusaria a TV, mas gostaria
de assegurar que as coisas eram gravadas da forma que eu quisesse e que
a minha canção não era transformada. Fá-lo-ia
não por ser um maníaco do controlo, mas por desejar ser
verdadeiro para com a canção e para mim próprio. É evidente
que quero que as pessoas ouçam as minhas canções,
e se aparecer na TV tivesse como consequência ter mais público
nos meus concertos, eu apareceria de bom grado. Apesar disso, acho que
podia ser estranho estar a cantar para pessoas que não estou a
ver, telespectadores a centenas de quilómetros de mim. Não
quero tornar-me um prisioneiro da TV. Não quero ser um prisioneiro
da fama. Depois de ter cantado as minhas canções, quero é desaparecer,
misturar-me com a multidão e ir à minha vida. A TV é um
mundo muito competitivo e acho que não me agradaria entrar nesse
mundo, pois o preço a pagar parece-me demasiado elevado. Nesse
mundo, aquilo que conta não é o que sabemos mas quem conhecemos. É uma
coisa alienante. Sempre contei com a publicidade boca-a-boca para ter
pessoas nos meus concertos, pessoas que depois até podem levar
um dos meus álbuns. É certo que se trata de uma publicidade
muito mais lenta, mas é a que conheço. Não gostaria
de obrigar ninguém a ter de engolir a minha música. Ou
seja, se alguém comprasse os meus seis álbuns todos de
uma vez, teria de se haver com uma montanha de canções!
Z – O que é que pensa da nova cena folk britânica
e norte-americana?
R – Parece-me que está a sobreviver bem, graças ao
facto de muitos jovens (e alguns velhos) continuarem a utilizar determinados
instrumentos e manterem a vontade de aprender melodias em sessões
nos pubs, mantendo a tradição viva. Por vezes toco com
eles, pego no meu trombone para passar o tempo e me divertir um bocado;
com novos e velhos a tocar em conjunto, levam-se as melodias mais além.
Os mais novos também querem fazer músicas novas, por isso
as coisas estão a correr bastante bem. Parece que a música
tradicional recebeu um sopro de vida com o filme “Irmão,
onde estás?”. Ainda não vi o filme, mas tenho reparado
que há músicos do rock e de outras áreas que se
estão a virar para o country, utilizando mais instrumentos acústicos
como banjos, bandolins e acordeões. A música torna-se mais
orgânica, menos fria, agora que se afasta dos samples; os arranjos
também se tornam menos intensos, de forma que as canções
podem respirar melhor e há mais espaço para a voz surgir
em primeiro plano. Gosto desta mudança, quer as pessoas estejam
simplesmente a seguir uma moda ou não. Não sei nada acerca
de revivalismo folk ou da “nova cena folk”: é uma
música que esteve sempre aí, mesmo quando não estava
na moda. Foi sempre tocada pelas pessoas que se sentavam umas com as
outras numa cozinha ou numa sala e partilhavam canções
e melodias.
Para alguns promotores de concertos de música folk as coisas estão
a complicar-se devido à falta de dinheiro e às restrições
impostas pelo Governo às cantorias em pubs em Inglaterra, mas
as pessoas continuam a cantar para si próprias. Hoje em dia, gravar
e editar CD’s tornou-se mais acessível. As grandes companhias
discográficas têm menos controlo sobre aquilo que nós
escutamos, por isso as pessoas são capazes de escolher aquilo
que querem cantar em vez de serem forçadas a tocar alguma fórmula
musical que não lhes apetece.
Z – Com “Mouth to Mouth” começou a editar os
seus próprios álbuns. Porquê?
R – Não tenho a certeza daquilo que querem dizer com “editar”.
O que posso dizer é que sempre poupei do meu salário para
produzir os meus próprios discos e pagar todas as despesas: o
aluguer do estúdio, a gravação, os trabalhos de
criação das capas dos álbuns... Aos músicos
amigos paguei os valores correntes pela participação nas
sessões de gravação. Dessa forma, só podia
gravar quando tinha disponibilidade financeira para produzir um disco.
A única coisa que dantes não fazia era a manufactura, o
armazenamento e a distribuição dos meus CD’s. Quando
vivia em squats (N. do T.: casas de ocupas) ou na minha carrinha não
tinha hipótese nenhuma de armazenar os meus álbuns. Por
isso é que a Cooking Vinyl licenciou a manufactura e a distribuição
dos meus CD’s.
Houve alguns erros básicos, alguns “soluços” profissionais
que acabaram por se revelar frustrantes. Sem entrar em detalhes, posso
dizer que a certa altura tinha de pagar para vender os meus próprios
discos e nem sequer podia oferecer alguns porque isso me saía
caríssimo... O dinheiro que fazia com as vendas de um álbum
não chegava para a gasolina nem para a gravação
do álbum seguinte... Por isso acabei por decidir fazer um esforço
extra, poupar e pagar também a manufactura. Como era a Cooking
Vinyl que detinha a licença sobre os meus discos, tive também
de a reaver.
“
Mouth to mouth”, outro CD duplo, é uma colecção
de canções novas e muitas canções bem antigas
que já tinha gravado há vários anos atrás,
sem que as tivesse conseguido encaixar nos 5 álbuns anteriores.
De certa forma eram uma espécie de “demos”, mas bem
vistas as coisas todas as minhas gravações anteriores foram “demos”...
Eu não tinha disponibilidade financeira para voltar a gravá-las,
embora muitas vezes desejasse tê-lo feito. Acho que, muitas vezes,
os meus desempenhos como cantor deixaram muito a desejar. Bom, de qualquer
forma tinha essas gravações em meu poder; só não
as tinha editado ou porque achava que elas não eram suficientemente
boas ou porque não se encaixavam no espírito dos álbuns
anteriores. Incluí também a gravação de uma
canção a capella que tinha editado há alguns anos
atrás, mas que agora estava indisponível. Provavelmente,
o nome do álbum devia ser “Mouth to mouth - aproveitando
as sobras”! Bom, na verdade ainda tenho canções que
não consegui incluir em “Mouth to Mouth”...
Z – Está a trabalhar nalgum projecto ou álbum
novo?
R – Tenho muitas canções e melodias, algumas das
quais já gravei. No entanto, ainda não estou a pensar no
próximo álbum. Não tenho nada planeado como álbum.
Encontro algumas canções, algumas ideias antigas, experiências
recentes, diferentes tipos de histórias e canções...
Tenho pensado nalguns arranjos, mas um punhado de canções
pode não fazer um álbum.
Fiz uma canção intitulada “Directions Song”,
que não é mais do que uma canção onde indico
o caminho para chegar a minha casa. Fiz a canção só pelo
gozo, para encorajar amigos a guiarem 8 horas para nos virem visitar
aqui em cima, na extremidade da Escócia. Na canção
explico todas as curvas do caminho, da auto-estrada às estradas
sinuosas, passando pelos rios, pontes e aldeias atravessadas pelo caminho.
No Natal, enviei a cassete a alguns amigos em vez de lhes mandar o habitual
postal de Natal e Ano Novo... A Aimee diz que, se eu lançar essa
canção, corremos o risco de apanhar com uma série
de visitantes indesejados, por isso sou capaz de esperar algum tempo
até nos mudarmos daqui...
Pode ser que também venha a incluir uma canção chamada “No
blood for oil”, que é sobre a guerra no Iraque e a Iraquenofobia
do George Bush (como eu dizia antes de os nossos exércitos terem
invadido o país). Nesta guerra estão a ser utilizados imensos
critérios diferenciados: o Governo corrupto dos EUA actua como
polícia do mundo, mas os EUA financiaram o Saddam Hussein durante
anos a fio, tal como financiaram os Talibã, Noriega e os Contras,
etc. A CIA (Comité para a Intervenção Arbitrária)
continuou a pagar ao Saddam numa altura em que já sabia do genocídio
de iraquianos e curdos. Só quando o Saddam ameaçou os interesses
petrolíferos americanos e se recusou a fazer “negócio” com
eles é que “decidiram” que ele era um assassino e
um ditador, só aí é que o processo de demonização
se iniciou. Anteriormente, quando os americanos o tinham sob controlo,
ele matava com a bênção americana. Os EUA têm
o Terceiro Mundo no seu próprio quintal. Ao mesmo tempo que procede
a cortes nos gastos com a educação e a assistência
social, o Bush gasta milhões de dólares numa guerra na
qual se sacrificam as vidas de iraquianos e as vidas de soldados americanos
da classe trabalhadora. Os contribuintes americanos estão a financiar
a Exxon e a Texaco, as grandes companhias petrolíferas e os ladrões
de colarinho branco (como os da Enron).
A CIA tem actuado como um grupo terrorista há já muitos
anos. No Chile, a 11 de Setembro de 1973, quando Salvador Allende, o
presidente democraticamente eleito, foi bombardeado e assassinado no
seu gabinete, a CIA deu uma ajuda. Entre outras coisas, Salvador Allende
estava a cumprir as suas promessas eleitorais relativamente à nacionalização
do petróleo e dos minérios, e os EUA não gostaram
disso. Nessa altura, a democracia chilena ia contra os interesses das
suas empresas. Foi aí que os EUA ajudaram a instalar no poder
o General Pinochet, o torturador e assassino fascista que era amigo da
nossa Primeiro-Ministro Margaret Thatcher, que lhe vendeu armas. A senhora
Thatcher também vendeu armas ao senhor Galtieri, da Argentina,
armas essas que, ironicamente, foram depois utilizadas contra soldados
britânicos na guerra das Malvinas...
O Governo dos EUA utilizou armas químicas no Vietname, armas do
tipo que agora nos dizem que Saddam Hussein tem escondidas. O Governo
dos EUA utilizou napalm e agent orange. Depois, quando os seus jovens
heróicos soldados regressaram feridos e mutilados do Vietname,
cuspiram-lhes e consideraram-nos inimigos da pátria quando eles
protestaram contra a guerra e o Governo de Nixon. As memórias
são muito curtas; é difícil acreditar! As contradições
e ironias sucedem-se e o processo é extremamente doloroso! Por
isso é que tenho andado a cantar uma canção acerca
disto, que pode entrar no próximo CD. Algumas pessoas já me
pediram para a gravar. Bom, mas já falei demais acerca deste assunto.
Vou ficar por aqui...
Quanto às outras coisas, tenho muitas outras canções
e muitas outras histórias, entre elas uma canção
de embalar que compus para o Solly quando ele era muito pequenino e eu
o embalava nos meus braços, adormecendo-o enquanto eu cantava
e ele arrotava depois de ter mamado...
Z – Será que a música devia fazer parte do Serviço
Nacional de Saúde, como uma vez disse numa entrevista?
R – Quando disse isso estava meio a brincar, embora também
falasse a sério. Estava a falar a sério quando disse que
a música nos pode fazer sentir bem, que tem poderes curativos,
quer nós a escutemos, cantemos ou façamos música.
A música é boa para a “alma” e a mim, pessoalmente,
também serviu para me afastar de complicações... É bom
quando as pessoas encontram formas de se expressarem, de expressarem
os seus sentimentos, de tal forma que a música acaba por ser uma
boa terapia, quer estejam a cantar com outras pessoas, quer se juntem
em festivais: a interacção é uma coisa saudável.
Para além disso, a minha afirmação também
continha uma observação de carácter económico.
O Estado de Bem-estar que temos aqui na Grã-Bretanha nunca nos
foi dado de graça: os nossos avós tiveram de lutar por
ele e, da maneira que as coisas estão, temos de continuar a lutar
para o manter. Os enfermeiros deviam ser mais bem pagos, precisamos de
mais hospitais, de menos hierarquias, de hospitais maiores e não
de mais armas e mísseis. Penso que com a música se passa
o mesmo: é preciso mais financiamento para a música nas
escolas e o ideal seria que as pessoas pudessem ouvir música de
graça... Que a música fosse financiada tal como o sistema
de saúde devia ser, e que fizesse parte do Sistema Nacional de
Saúde...
Ouvi em tempos a história de um homem cujo médico lhe tinha
dito que ele tinha um cancro incurável do estômago, e que
iria morrer. O homem encomendou e viu uma série de filmes de comédia
e fartou-se de rir. De tanto rir, curou-se e não morreu. Julgo
que o riso e o choro são dois lados da mesma moeda: já está provado
que se reprimirmos as nossas emoções ficamos doentes. Enquanto
seres humanos precisamos de chorar, de fazer o luto, de exprimir os nossos
sentimentos de tristeza, e precisamos também de exprimir a nossa
alegria. Não expressamos essas coisas na música? Claro
que sim! A música soul, do Otis Redding à Mahalia Jackson,
quem quer que seja... Espero não estar a soar como um guru New
Age pretensioso nem como um fanático religioso, mas acredito que
a música, o cantar e o escutar têm potencial curativo.
Em tempos fiz uma canção acerca do divórcio mas
sob o ponto de vista de uma criança que vê os seus pais
a separarem-se. Depois disso houve jovens que vieram ter comigo dizer-me
que se sentiam muito melhor depois de terem ouvido os seus sentimentos
expressos nas palavras de uma canção que eu tinha acabado
de cantar. Diziam-me que já não se sentiam tão isolados,
nem tão sozinhos com as suas dores ou tão confusos relativamente
aos sentimentos de lealdade. Também houve pais que vieram falar
comigo.
Já houve pessoas que vieram ter comigo muito emocionadas depois
de eu ter cantado uma canção chamada “The joy of
living”. Tinham perdido recentemente um amigo, o companheiro ou
o avô, e vieram ter comigo dizendo que estavam mesmo a precisar
de ouvir aquela canção, uma canção sobre
a velhice e o abandono desta vida, sobre a preparação para
a morte e o adeus. Precisamos dessas canções: elas alimentam-nos.
Por vezes, vejo pessoas “velhas” a tocarem em conjunto com
pessoas “novas” em sessões informais. Isso parece-me
um acontecimento particularmente saudável nesta época da
Generation Gap e dos ataques violentos a velhinhos. Tenho a certeza que,
para miúdos que habitualmente tocam em bandas punk nas quais gritam
a sua raiva e a sua frustração, estas são experiências
catárticas. Talvez não seja ao gosto de todos, mas essa
primeira experiência, esse esforço inicial, tornou-os interessados
em fazer música e em aprender a tocar guitarra, em fazer canções
e em apreciar outros tipos de música.
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